Palestra realizada durante o Encontro Técnico "PAISAGISMO REGENERATIVO - Jardim, Um Lugar de Poder", nos dias 26 a 28 de outubro de 2012, em Nova Petrópolis-RS.
PLANTAS E LUGARES DE PODER – Uma Visão Xamânica
Ka W. Ribas
Xamanismo é o
nome dado à primigênia forma do ser humano se conectar ao sagrado, suas origens
remontam a 40 ou 50.000 anos atrás, no período paleolítico. A palavra tem
origem na Sibéria, e passou a ser usada pelos antropólogos para definir um
conjunto de práticas ancestrais de cura, êxtase, devoção e conexão com o
transcendente. Esse conjunto de práticas é encontrado em todo o mundo, o que
transforma o xamanismo em um fenômeno universal essencialmente humano.
Por sua
antiguidade, o xamanismo pode ser considerado a mais antiga prática espiritual
da humanidade, em seus fundamentos está o reconhecimento do sagrado e
transcendente, o respeito pela ecologia, a relacionalidade e interconectividade
de tudo, a necessidade de expansão da consciência humana e a comunicação com
outros mundos, dimensões e realidades.
O aspecto
ecológico do xamanismo surge como o resultado do princípio de relacionalidade
onde nada existe isolado, toda manifestação, fenômeno ou ser está conectado e
interage com todos os outros aspectos da realidade ou realidades. Ele é fruto
do estudo meticuloso, interação e aprendizado do ser humano com o “livro”
sagrado de todas as tradições xamânicas: a Natureza!
“Os ancestrais xamânicos viviam em harmonia
e equilíbrio com todos os seres, pedras, plantas, animais, pássaros, peixes e
até insetos. Para garantir sua sobrevivência em ambiente hostil, os homens
primitivos interpretavam os sinais e as mudanças da natureza a seu redor.
Viviam de acordo com os ciclos do Sol e da Lua, das mudanças das estações, das
manifestações da natureza, com o vento, a chuva, etc.” Leo Artese
Essa
profunda, íntima e simbiótica conexão do xamanismo com a natureza o converte em
uma espiritualidade ecológica ou, se preferir, em uma ecologia espiritual!
Talvez seja
por isso que nos dias de hoje, em pleno século XXI de tecnologias cada vez mais
alucinantes/alucinadas, o xamanismo e as práticas e tradições xamânicas estejam
tão “em alta”! Isso porque o rompimento ou a ilusão de rompimento do ser humano
com a natureza estão causando tanto dano às pessoas e ao planeta, que o
xamanismo apresenta-se como um caminho espiritual coerente e atrativo ao anseio
pelo reequilíbrio nas relações entre a espécie humana e o seu entorno!
Na visão
xamânica, o equilíbrio é alcançado por meio de relações saudáveis. Relações
saudáveis são aquelas baseadas no respeito e na reciprocidade. E relações
saudáveis devem ser estabelecidas em todos os níveis, com todas as formas de
vida e todos os seres!
Assim,
“caminhar” com equilíbrio, harmonia e beleza é estabelecer relações saudáveis
com os outros seres humanos, consigo mesmo, com os deuses, divindades e
potências cósmicas, com a natureza e os reinos mineral, animal e vegetal.
E aí entram
as plantas, o Reino Vegetal!
Na Tradição
Tetzkatlipoka, do México, guardiã da antiga sabedoria dos Toltekas e Astekas, o
propósito mais elevado e nobre que um ser pode aspirar é SERVIR! Ainda segundo
essa tradição essencialmente xamânica, as plantas são consideradas seres mais
evoluídos que os humanos, pois exercem com maestria esse propósito!
Para o povo
Maia, com sua milenar tradição ainda viva e vigorosa em regiões do sul e
sudeste mexicano, Honduras, Belize, Guatemala e El Salvador, quando é realizada
uma Assembleia que definirá algo de importância para toda a Comunidade, são consultados
não apenas os seres humanos, mas toda a Comunidade não humana, como os rios,
lagos, animais, montanhas e as árvores e plantas!
Na tradição
xamânica das regiões andino-amazônicas, não há doença, enfermidade ou mal que
não tenha uma planta capaz de curá-la! Acredita-se que se uma doença
manifestou-se nesse plano de realidade, a Pachamama
(Mãe Terra) providenciará seu remédio, o que pode acontecer é que esse ainda
não seja conhecido! Nesse caso, é função do especialista, o xamã, se conectar
com os espíritos da Natureza e descobrir que planta é e como prepara-la para a
cura!
No xamanismo,
as plantas e o Reino Vegetal são utilizados de diferentes formas, porém o
respeito, reverência e carinho com que as plantas são tratadas são notórios! Um
xamã se comunica com as plantas, ou com o espírito que a habita, e a utiliza na
preparação de objetos cerimoniais, alimentos rituais, remédios, poções e
bebidas mágicas e uma infinidade de outras formas e meios.
Há certas
espécies de plantas que gozam de um status especial dentro das tradições
xamânicas ao serem veículos de profunda conexão com o sagrado, cujo uso pode
inclusive gerar estados de consciência expandidos e que são muitas vezes
chamadas de “Plantas de Poder”. Atualmente é utilizada a expressão enteógeno, de raiz grega, cujo
significado pode ser entendido como “deus interior”.
Huachuma - Cactus de San Pedro em Ollantaytambo-Peru
Existem uma infinidade de Plantas de Poder,
algumas dessa extensa lista são a Ayahuasca ou Yagé (uma bebida feita a partir
do cipó Banisteriopsiscaapi e da
folha da Psycotriaviridis), a Coca (Erythroxyloncoca), a Jurema (Mimosa hostilis), o Peyote (Lophophorawilliamsii), o San Pedro ou
Huachuma (Trichocereuspanachoi), o
Tabaco (Nicotianatabacum / Nicotianarústica),
a Cannabissativa, os cogumelos Amanita muscaria, Strophariacubensis e Teonanácatl (Psilocybemexicana) e muitas e muitas mais!
Muitas vezes
tratadas como “drogas”, algumas dessas plantas sagradas são legalmente
proibidas em diversos países e seu uso ritual é distorcido, transformando a
experiência mística em pura diversão, profanando a sua sacralidade. Esse é um
tema polêmico, mas que tem que ser abordado para que, por ignorância,
desinformação ou preconceito, plantas medicinais, curativas e mágicas deixem de
ser “satanizadas”, mal utilizadas, e perseguidas ao invés de serem tratadas com
o devido respeito e seriedade que merecem.
Além da
ingestão, Plantas Sagradas sempre estiveram presentes em pontos especiais da
Mãe Terra, lugares sagrados, chamados de Lugares de Poder.
Os Lugares de
Poder, no xamanismo, são locais especiais que se destacam pela sacralidade,
configuração paisagística e física, importância mítica e histórica, invulgar
intensidade e qualidade energéticas. Nesses lugares foram erigidos templos,
altares e demarcados espaços rituais e paisagísticos onde estão presentes as
plantas.
Lugar de Poder em Casa Branca-MG, com presença de uma árvore
guardiã chamuscada por um raio.
Muitas vezes
é a presença de uma árvore chamuscadaou queimada por um raio, mas viva, que
indica o lugar de poder, noutras vezes se plantava uma espécie especial ou
planta de poder para indica-lo e para que a energia e poder da planta
interagisse com o local.
É o caso dos
terraços de plantação dedicados ao deus Sol na Tradição Inka da Cordilheira dos
Andes, onde eram plantados alimentos sagrados como o Milho e a Quinua, além da
Coca e outras plantas sagradas para esse povo andino. Nos Lugares de Poder,
santuários e templos inkas, também se encontrava sempre presente a Chachacon (Senecio eriophytop) e a Pisonay (Erythrina falcata),
árvores sagradas, cuja a primeira demarca de forma bem evidente, pelas
condições de sua casca e florescimento, as estações do ano e a segunda,pelo seu
grande potencial energético, foi adaptada da selva amazônica para as alturas
andinas. Ainda hoje, em inúmeros sítios sagrados na região andina, estão
presentes essas duas espécies de árvores, no caso da Pisonay, algumas foram
plantadas pelos próprios inkas antes da conquista europeia!
Gigantesca e centenária Pisonay (Erythrina falcata) plantada pelos inkas na praça do povoado de Andahuaylillas, próximo a Cuzco.
No que diz
respeito à relação dos seres humanos com a Natureza e o Reino Vegetal, há uma
lição singela e belíssima encontrada ainda hoje na Tradição Andina que é ter
como principal templo e Lugar de Poder do camponês indígena, a “chacra”, ou seja, o campo de cultivo,
onde a Mãe Terra, generosamente, concede suas dádivas e bênçãos em forma de
alimentos! Ali os Runa Kuna (seres
humanos) rezam e realizam rituais propiciatórios de chuvas, agradecem
cerimonialmente a fertilidade e fartura da Terra e reverenciam com profundo
respeito às potências e forças do Céu e da Terra, às montanhas, aos rios e
nascentes, ao espirito das plantas e à própria Pachamama. Para essas pessoas, o ciclo agrícola é inteiramente
ritualizado, havendo um Calendário Sagrado que demarca, por meio de cerimônias
e ritos, os principais momentos como preparar a Terra, semear, proteger o
desenvolvimento das plantas (inclusive conversando com elas para lhes dar
estímulo) e, finalmente, a colheita, que é celebrada por meio de uma oferenda
de agradecimento, que, simbolizando um alimento ritual, será “entregue” para a
Mãe Terra e cumprirá o dever ético e cósmico da lei da Reciprocidade, que no
universo andino é conhecida como Ayni.
Ainda na
região andina, é muito utilizado como “protetor” o cacto San Pedro ou Huachuma,
uma Planta de Poder milenar da região que, além de ingerido em rituais e
sessões xamânicas, proporcionando curas, visões, expansão da consciência,
êxtase espiritual e contato com o mundo espiritual, acumula a função de
proteção energética e espiritual de uma residência ou estabelecimento comercial.Por
isso é encontrado na entrada das casas, semelhante a outras plantas como o a
Espada de São Jorge, Arruda e Guiné, cujo uso com essa finalidade é bastante
conhecido e difundido no Brasil.
Análogo ao
San Pedro, na América do Norte encontramos o cacto Peyote, que é uma importante
Planta de Poder para inúmeras tradições xamânicas. O seu Lugar de Poder, por
excelência, é no deserto de Wirikuta, no norte do México, onde alguns povos
indígenas como os Huichole realizam, anualmente, uma peregrinação sagrada ao
deserto para encontrarem a este ser e o colherem para ser utilizado em seus
rituais e cerimônias. Assim como oSan Pedro, alguns xamãs também plantam o
cacto em seus jardins para que o espírito da planta energize e abençoe todo o
ambiente. A mesma coisa acontece com outras Plantas de Poder como o Tabaco (que
quando nasce espontaneamente no jardim de um xamã é um sinal de benção) e a
Ayahuasca, havendo templos e igrejas das religiões que o fazem uso como
sacramento, com belos jardins compostos pelo cipó chamado de Mariri ou Jagupe e
arbustos da Chacrona ou Rainha.
Todos esses
exemplos e lições de tradições ancestrais xamânicas nos mostram como o Reino Vegetal
tem sido, no decorrer de todo o processo da evolução do ser humano, seu
imprescindível aliado, fonte de cura, sabedoria e proteção. Hoje, mais do que
nunca, coerente com a visão xamânica do tempo como um círculo ou espiral e não
uma linha contínua, o retorno da sabedoria das antigas tradições leva-nosà
reflexão e ao resgate de uma relação além da matéria e do físico com as
plantas.
Quantas
pessoas, intuitivamente, por saberem em seu interior e com a sabedoria que
transcende a limitação da mente racional que se pode e é saudável comunicar-se
nesse plano com as plantas! O ato de “falar” com as plantas, na visão xamânica
é, muito além de aceitável, um hábito saudável e recomendável, é um fundamento
para se estabelecer uma relação harmônica e equilibrada com o Reino Vegetal.
Essa relação toma
em conta o espírito das plantas e sua sacralidade enquanto manifestação de um
poder, potência ou deus cuja essência de vida está presente em todos os seres,
é acessível a todas as pessoas e encontra-se presente em templos, santuários,
Lugares de Poder e, inclusive,no seu próprio jardim!
Gratidão Toni Backes e toda a Equipe do Encontro Técnico!